Uma rotina para chamar de sua

maio 07, 2014


Sibélia Zanon


Deitei na varanda da pousada e olhei o céu. As nuvens da noite anterior haviam ido embora, revelando as tantas estrelas que habitavam aquele espaço misterioso. Percebi que sentia falta de olhar para o céu nas noites estreladas. Mas... por que eu não podia fazer aquilo com mais frequência?

Se a rotina tivesse uma cara, ela se pareceria com a do bicho-papão. “Não dá tempo de parar para pensar, a rotina não deixa!”, “Não tenho tempo, a rotina me engole!” são pensamentos que fazem parte do senso comum. Mas quem constrói essa rotina soberana? Existe um senhor das rotinas, com o qual não conseguimos contato ou negociação?

Acontece que a mal afamada rotina tem, sim, um lado bom. Ela está relacionada à sequência, ao ritmo e aos ciclos da natureza, como o dia e a noite ou as estações do ano. A rotina ajuda a organizar o caos, gera segurança e representa nossas escolhas por determinados padrões, como uma boa alimentação, por exemplo, tempo dividido entre trabalho e descanso e... frestas para olhar o céu.

O perigo está em sistematizar a rotina a ponto de entrarmos no piloto automático.Quando entramos nesse modo de operar, passamos a enfrentar nossos problemas e achar soluções, apaticamente; vivemos grandes histórias sem nos sentir protagonistas delas. Podemos cruzar com um elefante ou com um ipê florido sem notar, porque marchamos anestesiados, embriagados de mesmice, ausentes do momento presente. Vivemos, mas não vivenciamos.



E se pudéssemos reviver cada dia? Será que não poderíamos reviver com um novo olhar, prestando atenção a detalhes, com uma postura nova sobre os mesmos acontecimentos? A ideia, explorada em filmes como Corra, Lola, Corra (Lola Rennt),ou no mais recente Questão de Tempo (About Time),leva a refletir sobre como estamos aproveitando o presente. Será que vivemos com a esperança de que o momento presente seja só um rascunho a ser passado a limpo na próxima cena?

Realizar coisas cotidianas não é empecilho para que ocorram descobertas diárias. O que importa na rotina é a atitude de querer observar e aprender coisas novas, a atitude de querer estar presente, de ter olhos abertos para aquilo que vai além do ordinário. Talvez adotar essas posturas constantemente seja um antídoto para o desejo de reviver cada dia. “Se os seres humanos não se deixassem empolgar de maneira tão absorvente pelas necessidades e pelas muitas ninharias cotidianas, mas quisessem prestar também alguma atenção aos pequenos e grandes acontecimentos que se passam à sua volta, deveria em breve chegar-lhes um novo reconhecimento. Surpreender-se-iam consigo mesmos e mal acreditariam que até então pudessem ter passado impensadamente por coisas tão marcantes”, escreve Abdruschin em Na Luz da Verdade.

Coisas marcantes fazem parte da rotina. Ainda assim, somos perseguidos pelo mito de que o cotidiano precisa ser suportado, enquanto que o bom e o ótimo estão distantes, escondidos em alguma novidade que está por vir. Prorrogamos, assim, a felicidade. “No meu próximo emprego serei reconhecido.”, “Em um novo relacionamento serei mais feliz!” são mantras ilusórios. O mito do novo se alastra como uma doença do mundo moderno, em que tudo precisa ser sempre novo. Assim, continuamos consumindo relacionamentos e produtos, e com isso somos supostamente felizes.


Imaginar que o importante está sempre além do momento presente gera um mal estar, como se o agora fosse um desperdício, algo esvaziado de sentido, repleto da nostalgia de um “vir a ser”. Dessa forma, a expectativa de realização é transferida para um campo nebuloso, pouco palpável, talvez inatingível. Se, porém, conseguíssemos estar inteiros e focados na realização presente, cresceria em nós a sensação de completude, de satisfação e de utilidade enquanto seres humanos. Cresceria o nível de consciência e de presença no agora.

O céu está sobre as nossas cabeças, com as estrelas mais ou menos visíveis, mas ele continua lá. Nem sempre é preciso sair da rotina para viver o extraordinário. Quem sabe possamos entrar na rotina, com corpo e alma, e então reconheceremos nela as pequenas frações do extraordinário.



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