“Se a ideia da interioridade dava
consistência à vida dos indivíduos no passado, hoje vivemos o instantâneo, o
espetáculo.”
Mary del Priore, historiadora
Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela
do que eu?O
conto Branca de Nevefoi publicado
pela primeira vez entre 1812 e 1822, mas quem diria? O espelho continua sendo nosso
personagem principal.
Fala-se muito sobre a conquista de
direitos e sobre o respeito às diferenças, discute-se o feminismo e luta-se
para defender o princípio de que mulheres não são mercadorias. Mas como a
teoria deve ser acompanhada pela prática, que histórias as passarelas do
cotidiano têm para nos contar?
A historiadora Mary del Priore, em
entrevista à revista Isto É, fala
sobre a mulher e sua relação com o corpo: “No decorrer deste século, a
brasileira se despiu. O nu, na tevê, nas revistas e nas praias incentivou o
corpo a se desvelar em público. A solução foi cobri-lo de creme, colágeno e
silicone. O corpo se tornou fonte inesgotável de ansiedade e frustração.
Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas,
mas em salvar nossos corpos da rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do
inferno, mas a balança e o espelho. É uma nova forma de submissão feminina. Não
em relação aos pais, irmãos, maridos ou chefes, mas à mídia”.
Nesta
nova realidade é o corpo que diz quem somos em detrimento das ideias. Além de
reforçar a armadilha do julgamento pela imagem, a nova submissão acentua o
estereótipo da mulher brasileira fácil e sensual mundo afora.
A filósofa Marcia Tiburi, em entrevista ao
Portal Aprendiz, argumenta: “Talvez a educação, no ponto onde ela possa discutir a
questão de gênero, devesse ajudar as mulheres a pensarem no porquê e como elas
se tornaram aquilo que são hoje. Isso é uma pergunta urgente: o que está
acontecendo com as mulheres hoje. Você as vê desesperadas por procedimentos
estéticos, roupas, hormônios, ginástica. Por que esse desespero feminino? O que
vai nos faltar sem tudo isso?”
O que vai nos faltar? Sem a ênfase no
lado de fora, restaria fazer um lifting
no lado de dentro. Fala-se exaustivamente sobre a
liberdade feminina e a liberdade de preconceitos. Mas nas passarelas da nossa realidade, essas são
pseudoliberdades, bandeiras levantadas por princesas românticas ou por rainhas
malvadas: Espelho, espelho meu...
Filósofos, historiadores, sociólogos,
psicanalistas avisam já há um
bom tempo: a mídia e o marketing guiam a humanidade. O sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, no livro Amor Líquido,
é provocativo, ao mostrar que as parcerias seguem nesta mesma direção,
obedecendo sobretudo às regras do consumismo e abandonando os princípios do
amor.
“Guiada pelo
impulso, a parceria segue o padrão do shopping e não exige mais que as
habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros
bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente e usada uma só vez,
‘sem preconceito’. É, antes de mais nada, eminentemente descartável.
Consideradas defeituosas ou não ‘plenamente satisfatórias’, as
mercadorias podem ser trocadas por outras, as quais se espera que agradem mais,
mesmo que não haja um serviço de atendimento ao cliente e que a transação não
inclua a garantia de devolução do dinheiro.”
A
nova submissão ao espelho contribui com a superficialidade das relações, que,
por sua vez, intensifica a sensação de solidão.
Erich
Fromm, psicanalista alemão, conta no livro A
arte de amar que, movidos pelo propósito de afastar a solidão, buscamos a
sensação de pertencer ao rebanho. “Se sou como todos os outros, se
não tenho sentimentos ou pensamentos que me tornam diferente, se me conformo em
matéria de usos, roupas, ideias, ao modelo do grupo, então estou salvo – salvo
da terrível experiência da solidão”.
A
história nos mostra que a conformidade sempre foi desejada:“Os sistemas ditatoriais usam a
ameaça e o terror para induzir a essa conformidade; os países democráticos, a
sugestão e a propaganda”, continua Fromm.
Se
deixo de ser só ao me igualar aos outros e uso como base para essa igualdade a
mídia e a televisão, resta ainda a pergunta: Oque vemos na televisão? Um perigoso
analfabetismo visual que, aliado à necessidade de conformismo, mata o
questionamento, o senso de beleza, apercepção sobre o
próprio corpo. A reprodução automática do que se vê nas telas aniquila, por
fim, a capacidade de se espantar com a realidade. Passamos a gastar nossos
salários para contentar espelhos mentirosos.
Que
liberdade buscamos? A liberdade de pertencer ao rebanho?Que tipo de amor se atrai com a estratégia do culto à imagem? Um amor que
cuida e aquece ou um pseudoamor descartável e utilitário? Provavelmente apenas
mais uma relação-produto para ser descartada rapidamente. E agora?
Em uma época em que há tanto disponível nas prateleiras, pode parecer desnecessário criar algo com as mãos. Esse labor, no entanto, vai ao encontro de uma necessidade mais profunda: a reconexão com processos que se ligam à essência da própria vida. Mais do que o resultado material das atividades, o que importa é a transformação vivenciada no interior do próprio ser humano.
“Os pais terrenos oferecem proteção e ajuda para a época que o espírito necessita, a fim de conduzir de maneira plena e autorresponsável seu novo corpo terreno; depois, porém...”