Daniela Schmitz Wortmeyer
O voo das
araras-canindés é uma pintura inesquecível. O dorso inteiramente azul, tendo
como fundo o céu do cerrado no verão, produz um tom sobre tom, e eis que um
giro inesperado revela a face inferior do corpo da ave, tingida de amarelo-ouro
a partir do pescoço. Mais rodopios me surpreendem com um balé no ar. A dança em
amarelo e azul foi tão ágil que me fez perder a noção das formas, ficando
apenas a alternância de cores e o deslumbramento. Passei a ficar vigiando seus
movimentos, ouvindo os sons e aguardando a próxima aparição, que muitas vezes
ocorria sob o sol do final da tarde, a iluminar a face amarela de suas asas durante
o voo majestoso. Também vi bandos de araras pousados em árvores, entabulando extensas
conversas com seu grasnar característico. Nessas horas eu ficava torcendo para
que uma delas resolvesse iniciar um voo. Quando distendiam as penas, abrindo suas
grandes asas e cauda e permanecendo assim por alguns segundos no ar, eu me
sentia diante de uma imagem sagrada, atravessada por luzes e cores, irradiando
vitalidade e liberdade.
A magnificência
da natureza no Planalto Central, assim como em outras regiões do vasto território
brasileiro, exigiria alguns tratados para ser descrita. Além de mamíferos como
a suçuarana, o lobo-guará, a jaguatirica e tantos outros que costumam transitar
longe dos olhos humanos, há aves em profusão que frequentemente são avistadas
pelos visitantes, diversas espécies de gaviões, araras, papagaios, maritacas, martins,
beija-flores e inúmeras outras, ao lado de uma infinidade de borboletas,
libélulas e outros insetos multicoloridos. A vegetação típica do cerrado, balizada
por árvores esculturais, com troncos de belas texturas e formatos retorcidos,
revela flores endêmicas de rara beleza, além de plantas com variadas
propriedades medicinais. As trilhas sob sol forte e céu de azul intenso cruzam
um solo impregnado de minerais, indo ao encontro de rios de águas cristalinas
sinalizados pelos buritis em suas margens. Chapadões de pedra esculpidos ao
longo de milênios envolvem cachoeiras monumentais, arrematadas por poços azuis
e verdes que convidam ao refresco e à contemplação. O ar puríssimo, a paz e a tranquilidade
reinantes coroam esse cenário de harmonia paradisíaca.
Após alguns
dias de maravilhamento constante, alheia aos assuntos cotidianos, voltei para
casa e fui checar minha caixa de mensagens. Então tomei um choque: me deparei
com um e-mail que se referia justamente à região onde eu estivera, sobre um
projeto de construção de usinas hidrelétricas e posterior instalação de
mineradoras estrangeiras, com promessas de aumento na arrecadação dos
municípios. Quem difundiu a notícia destacava o risco de as novas gerações perderem
a possibilidade de conhecer aquele santuário no Brasil-Central. Isso porque,
como se sabe, os impactos de tais iniciativas sobre o ecossistema local são
incalculáveis, produzindo gradual extinção de paisagens e espécies que hoje
coexistem em delicada interdependência e harmonia.
No primeiro
momento senti pânico, desespero, ao imaginar que toda aquela vida que preencheu
minha viagem poderia sofrer e desaparecer. Depois me senti impelida a escrever
sobre o assunto, a agir de alguma forma a respeito dessas ameaças. Em meio à
turbulência de emoções e imagens que se sucediam em minha consciência, eu
pensava por que esse velho enredo continua a ser reeditado, sempre de novo
entrando em cartaz em diferentes regiões do Brasil e do mundo, apesar dos
alarmes acionados pela Natureza.
Uma
retrospectiva histórica mostra que as promessas de vantagens financeiras e
melhoria das condições de vida, feitas com veemência pelos “empreendedores” que
animam projetos desse naipe, frequentemente têm alcance muito limitado ou
acarretam com o tempo prejuízos que superam os benefícios, considerando as consequências
para o planeta. Dia após dia vemos proliferarem as dificuldades para a vida
humana, atingindo aspectos tão básicos como a água, o ar e a alimentação – sem falar
na interminável lista de mazelas de ordem social, moral e espiritual, corolário
de tal modelo torto de desenvolvimento. O fato de esses problemas se avolumarem
nas grandes cidades, tidas como mais “desenvolvidas” segundo os parâmetros
vigentes, poderia ser suficiente para conduzir a um profundo questionamento da
direção adotada para o progresso da humanidade.
Mas ainda há
quem acredite em um progresso que implica a destruição da paz, avançando no
contrafluxo das leis perfeitas que regem a Natureza – isto é, todo o Universo. Persiste
a negação obstinada de que o ser humano é parte integrante de um imenso sistema
cósmico, uma minúscula célula que sofrerá, cedo ou tarde, os efeitos dos prejuízos
causados às demais. A esse respeito, o escritor Abdruschin adverte: “Nenhum ser humano pode se esquivar das leis da natureza, ninguém consegue nadar em sentido contrário a elas. Deus é a força que impulsiona as leis da natureza, a força que ninguém ainda compreendeu, que ninguém viu, mas cujos efeitos cada um, dia a dia, hora a hora, até mesmo nas frações detodos os segundos, tem de ver, intuir, observar, se apenas quiser ver, em si próprio, em cada animal, cada árvore, cada flor, cada fibra de uma folha, quando irrompe do invólucro para chegar à luz.”
Não falta à
humanidade capacitação intelectual para compreender os princípios que regem o
grande sistema universal e reconhecer as consequências de sua participação
ativa nesse funcionamento. Tampouco lhe falta capacitação tecnológica para
implantar um modelo sustentável, responsável e ético de desenvolvimento. O que
falta, então?
Por que
insistimos em nadar contra a corrente das leis universais? Por que continuamos
a ser perturbadores da harmonia com nossas escolhas?
Em meus dias de
férias, além das araras, pela primeira vez vi papagaios, daqueles verdes com
uma faixa vermelha na cauda, voando livremente. Lembrei-me da minha infância,
quando algumas pessoas tinham papagaios em cativeiro como animais de estimação.
Minhas lembranças dessa época alcançaram araras-canindés em jardins zoológicos.
O contraste provocado por essas imagens foi arrebatador: de um lado, as aves
encarceradas em gaiolas do meu passado, com fisionomia triste, cores pálidas e
movimentos restritos; do outro, as aves livres que admirei, com cores resplandecentes
e expressão vibrante, denotando alegria e gratidão pela vida em cada movimento.
Quem não conhece
a expressão de uma ave livre não pode sentir esse contraste. Talvez até
acredite que a liberdade seja perigosa, que o cativeiro não seja tão
prejudicial assim, quem sabe necessário. É assustador constatar o quanto
perdemos a capacidade de perceber tais diferenças, em diversas esferas da
existência. O quanto nos tornamos insensíveis para o horror de tudo o que se opõe
à Vida, consentindo com decisões que tornam nosso universo diário cada vez mais
triste, pálido e sem horizonte.
Com tanta
inspiração diante das imagens das aves, fiquei imaginando que as pessoas que
subjugam outros seres para alcançarem seus objetivos devem se parecer, em um
nível mais sutil, com aves em cativeiro, cujos olhos perdidos esqueceram a cor
do céu. Pois, ao causarem sofrimento a outros, focando apenas em ganhos
materiais imediatos, aprisionam o que há de melhor em si mesmas e ficam tolhidas
em seu potencial humano – o que termina por resultar na autocondenação a um
profundo sofrimento. Em contraste, as pessoas que procuram cultivar a harmonia
com as leis universais, zelando por todas as formas de vida, talvez interiormente
se assemelhem às araras-canindés que estendem as asas para o voo, irradiando
luz e calor pela vibração de seus espíritos. Guardam no coração o anseio por
voos mais elevados, em que o desenvolvimento da humanidade será sinônimo de
Vida em plenitude para todos os seres.
Fotos: Charles Wortmeyer