Nessa noite
chuvosa de dezembro, a energia elétrica parece querer falhar. Ouço os trovões
cada vez mais perto e observo os clarões pela janela, que brincam de se mostrar
entre as folhas das árvores. A água cai benfazeja, purificando, regando,
lavando a alma e trazendo inspiração.
O mês de
dezembro sempre se revestiu de um encanto especial, desde minha infância, mas
hoje os sentimentos parecem tão nostálgicos, tão diferentes... Um amigo me
disse que essa é a época da melancolia na cidade, que é preciso tomar cuidado
com os ânimos depressivos. Interessante como coexistem movimentos aparentemente
tão ambíguos: a agitação das festas de fim de ano, a correria dos preparativos
e finalizações, a expectativa de férias, diversão, comidas, bebidas e
encontros, e por outro lado uma teimosa sensação de isolamento, de ausência de
sentido, de vazio.
Vez por outra
tenho percebido essa conotação melancólica nas pessoas e em mim mesma. Parece
haver uma dificuldade geral de se encantar com a vida, de sentir espontânea
alegria – como era natural na infância. E o Natal parece trazer essa
constatação com maior intensidade. Nessa direção, o escritor Abdruschin
assinala: “Como é estranho, pois, que cada ser humano, que deseja que a festa
de Natal atue de maneira excepcionalmente certa sobre ele, procure se transportar
para a infância! Isto é, pois, um sinal
suficientemente nítido de queele nem é capaz de vivenciar, como adulto,
a festa de Natal com a intuição!É a
prova de que perdeu alguma coisa que possuía quando criança!”
O que será que perdemos ao ingressar no “mundo adulto”? Nesse mundo tão
cheio de compromissos e obrigações, tão preocupado com status e realizações
materiais, que pouco ou nenhum espaço deixa para o lúdico, para a fruição
desinteressada das alegrias da vida?
Ao rever o filme Um Bom Ano, chamou-me
a atenção a fala de um personagem sobre seu sobrinho-neto, que havia mudado
drasticamente sua maneira de ser, depois que cresceu e se tornou acionista da
bolsa de valores. O tio-avô, um bon
vivant que moravaem um chateau, uma antiga propriedade vinícola no interior da França,
teria dito: “Como se pode confiar num homem que não sabe apreciar os prazeres
da vida?” De fato, o sobrinho-neto sequer se permitia tirar férias, para não se
arriscar a ficar para trás na frenética corrida de seu ambiente de trabalho,
calculando o valor das coisas (e das pessoas) exclusivamente com cifras.
Os prazeres da vida... As palavras desse personagem me remeteram para
além de uma postura hedonista, pois nelas havia algo de encantamento diante da
beleza de uma canção, da luz de um pôr-do-sol, do usufruto do aroma de um bom
vinho, da demora no afago do olhar da pessoa amada... Um sentimento de gratidão
pelas pequenas dádivas de cada dia. Ficava evidente que aquele que só se
ocupava com sua sobrecarregada rotina, em busca de sucesso e dinheiro, não
tinha olhos para o real valor de uma velha propriedade que transpirava poesia.
O acionista da bolsa herda o chateau
de seu tio-avô, onde passava as férias de sua infância, e tenta logo convertê-lo
em cifras. Mas, involuntariamente, acaba perdendo o controle da situação e mergulha
em recordações, redescobrindo a si mesmo e redefinindo seu olhar sobre a vida.
Como fez inicialmente o protagonista do filme, a maioria de nós procura
fugir o mais rápido possível desses momentos de nostalgia, sem imaginar que
justamente ali poderiam ser encontradas pistas para resgatar a felicidade
perdida... “Aquilo que na Terra se chama infantil é um ramo da atuação da pureza! Pureza no sentido mais elevado,
e não apenas no sentido humano-terrenal. O ser humano que vive na irradiação da
pureza divina, que concede lugar para a irradiação da pureza dentro de si,
adquiriu com isso também o infantil, seja ainda na idade da infância ou já como
adulto”, esclarece Abdruschin.
É uma verdadeira bênção encontrar alguém que conserva um brilho
infantil no olhar, que ainda possui a capacidade de rir e conduzir com leveza as
vicissitudes do dia a dia, que mostra encanto diante de uma planta ou um
animal, que se alegra diante de um prato saboroso, uma música bonita ou um simples
passeio no parque. Alguém que consegue enxergar as pessoas além das aparências,
possuindo genuína predisposição para o bem. Cujo natural semblante é transparente,
franco e generoso. Um coração puro, como se diz no senso comum.
Mas a maioria só se permite gastar tempo com coisas “sérias”, que sejam
úteis e tragam vantagens palpáveis, carregando um pesado fardo a cada palmo do
caminho. Como máquinas programadas para cumprir estritamente suas funções sociais,
sem espaço para a alegria, a criatividade, o sonho, a reflexão... Esquecemos completamente
que o alimento da alma é imaterial. E depois consideramos estranho e até
“inexplicável” quando aqui e acolá desponta um vazio interior.
Quem sabe possamos aprender algo sobre a solução dos problemas da vida com
as crianças, em vez de perder horas de sono cismando, como comumente fazem os
adultos. Quem sabe este Natal seja uma oportunidade para resgatar um pouco do
encanto perdido. Não com devaneios sobre a festa (ou a vida) ideal, mas cultivando
uma serena abertura para o “clima” dessa época especial, vivenciando-a com
gratidão. Como uma noite com chuva batendo na janela, que lava feridas e
inspira a reflexão: um presente descendo do Céu...
Em uma época em que há tanto disponível nas prateleiras, pode parecer desnecessário criar algo com as mãos. Esse labor, no entanto, vai ao encontro de uma necessidade mais profunda: a reconexão com processos que se ligam à essência da própria vida. Mais do que o resultado material das atividades, o que importa é a transformação vivenciada no interior do próprio ser humano.
“Os pais terrenos oferecem proteção e ajuda para a época que o espírito necessita, a fim de conduzir de maneira plena e autorresponsável seu novo corpo terreno; depois, porém...”