—
Cláudia, não pode ser. Brincadeira! Seis meses com essa bicicleta e você ainda
não sabe?
A voz
do rapaz ecoava no silêncio da montanha, na pousada quase deserta.
Fiz um
alongamento do fundo da minha rede para ver o que acontecia. Era um casal jovem
e bonito. Os mesmos que haviam jantado no restaurante da pousada na noite
anterior. O cardápio co- meçava com um creme de mandioquinha. Depois chegou uma
truta, feita na hora, com massa fresca, salpicada de tomates e shitake. Tudo
arredondado por um bom vinho tinto e nossas duas mesas – as únicas ocupadas
naquela noite – foram privilegiadas pela simpatia do chefe pela MPB que
tocava soltinha e sem pressa. Lá da minha rede, imaginei: qual daqueles
ingredientes teria feito o casal amanhecer com um espírito tão ácido?
O moço
continuava segurando a bicicleta impaciente, enquanto Cláudia, agachada, mexia
nos pneus e nas rodas, fazendo sei lá o quê.
Decidi
que a culpa da acidez não era dos ingredientes da noite anterior. Talvez fosse
uma úlcera antiga dando alfinetadas. A paisagem também não devia ser o motivo:
montanhas verdes, sol penetrando o ar fresco de outono, grevíleas-anãs chamando
beija-flores. A pousada levava a umaestrada de terra no meio de araucárias,
ótima para um passeio de bicicleta.
—
Cláudia, hoje você tem que aprender. – ele insistia com o ar austero de um professor de jardim de infância, na época em que ainda se colocavam orelhas de
burro nas crianças. A moça continuava agachada com as mãos nos pneus.
Decidi que
eles dormiram mal. A lareira do chalé deles devia ter algum defeito ou talvez
as toalhas não estivessem tão brancas como as minhas. A conversa da bicicleta
não mudava de lugar, então resolvi sair da rede e arrumar minha bagagem. Em
alguns minutos eu seria obrigada a trocar aquela paisagem mineira nostálgica
pela chegada impactante em Guarulhos.
Enquanto
guardava as minhas coisas, tive um repentino ataque de felicidade por estar ali
sozinha, sem nenhum ser humano em volta para avaliar a minha performance em
qualquer atividade.
No
caminho para o carro, ainda ouvi um tom agressivo, já sobre outro tema, que
vinha de longe:
— Você
me dá o que você quiser, Cláudia. Pode ser uma calça jeans, tanto faz, sei lá.
Acho
que a Cláudia estava gripada porque não escutei a voz dela em nenhum momento.
Foi uma pena. Se ela tivesse falado qualquer coisa, eu saberia o nome do chato
do marido dela.
Em uma época em que há tanto disponível nas prateleiras, pode parecer desnecessário criar algo com as mãos. Esse labor, no entanto, vai ao encontro de uma necessidade mais profunda: a reconexão com processos que se ligam à essência da própria vida. Mais do que o resultado material das atividades, o que importa é a transformação vivenciada no interior do próprio ser humano.
“Os pais terrenos oferecem proteção e ajuda para a época que o espírito necessita, a fim de conduzir de maneira plena e autorresponsável seu novo corpo terreno; depois, porém...”