Expandir a sensibilidade para as impressões mais fortes, mais genuínas e menos voláteis pode conferir maior nitidez ao olhar.
A bandeja está cheia de brigadeiros. As esferas são planetas irregulares, umas maiores que as outras, umas mais redondas do que as outras. Os brigadeiros foram enrolados pelas crianças da casa. Todas trouxeram abundância à bandeja, cada uma do seu jeito, da maneira que era capaz de fazer.
Brigadeiros perfeitos, todos iguais, feitos em série, simétricos e estéticos moram na doceria. Já os globos imperfeitos, enrolados na realidade, carregam a personalidade, a presença e o momento de cada um. Denotam processos de crescimento e maturação.
Lidar com as diferenças, com as incompletudes e também com as imperfeições que notamos em nós mesmos e nos outros é um convite para expandirmos a capacidade de compreensão, alongarmos as réguas de medir o mundo e lembrarmos que tudo e todos estamos em processo de desenvolvimento.
O impulso para a perfeição permeia a nossa natureza e está diante dos olhos. A proporção áurea, vista na espiral do caracol ou no miolo de um girassol, influencia a arquitetura, o design e a arte.
Não apenas nas formas externas, mas também do lado de dentro o impulso para a perfeição faz parte da natureza humana. Somos dotados de uma espécie de inquietude, uma saudade por algo que nem sempre sabemos nomear. Essa inquietude impulsiona a busca por aperfeiçoamento e conexão com o que é bom, com o belo, com o que nos parece ideal e grandioso.
No entanto, cada um tem uma história e uma forma diferente de ler o mundo, sentindo também de maneira diversa as experiências vividas.
“Decisivo para o reconhecimento de um quadro é a maneiracomo se olha, osentido puramentepessoal ou a direção do sentido daquele que observa, e não o quadro ou a paisagem em si. Cada qual vivencia de maneira diferente”, escreve Abdruschin em Na Luz da Verdade.
O julgamento sobre as perfeições ou imperfeições de si mesmo e do outro passa, portanto, por nossas lentes singulares de apreender a realidade. E essas lentes podem ser mais ou menos embaçadas. Dar atenção à intuição é uma forma de limpar os filtros desnecessários ou prejudiciais das lentes, que muitas vezes são agregados pela razão ou pelo sentimento. Expandir a sensibilidade para as impressões mais fortes, mais genuínas e menos voláteis pode conferir maior nitidez ao olhar.
Ao observar a história, percebemos que, por vezes, a imperfeição está no jeito de olharmos o objeto e não no objeto em si. Um exemplo são as intervenções que o ser humano fez na natureza.
“No século XVIII, ideias da perfectibilidade da natureza dominavam o pensamento ocidental. A humanidade melhoraria a natureza por meio do cultivo, acreditava-se, e ‘aperfeiçoamento’ era o mantra. Plantações e campos ordenados, florestas desbastadas e vilarejos limpos e organizados transformaram ermos selvagens em paisagens produtivas e agradáveis. A floresta primitiva do Novo Mundo era, por contraste, uma ‘selva desolada’ que tinha de ser conquistada. O caos tinha de ser ordenado, e o mal tinha de ser transformado em bem”, escreve Andrea Wulf no livro A invenção da natureza. Claro que esta história não podia acabar bem.
Revisar a forma de olhar pode ressignificar nosso posicionamento, nossas ações e promover curas, como propõe Roberto Crema no livro Normose - a patologia da normalidade: “Olhar para o outro como quem olha para um ser humano nobre pode fazer com que o mundo, imediatamente, torne-se mais bem frequentado. É a pura magia do olhar, que tem uma função estruturante. A forma como olhamos para o outro e para nós mesmos tem o poder de estruturar, de constituir”. Isso porque aquilo que escolhemos olhar também nos nutre, nos aumenta ou diminui.
Ajustar nossa lente de julgamentos é sempre interessante, mas obviamente não elimina algumas imperfeições, nem nossas nem do outro. Lidar com diferenças, falhas, ausências e erros é um desafio e também uma oportunidade de expansão. Compreender os sofrimentos e as fraquezas do outro é um exercício de doação. À medida que nos colocamos de forma propositiva e auxiliadora perante o outro, sem ser coniventes, também estamos recebendo.
Talvez um brigadeiro oval, não tão perfeitamente redondo, tenha um sabor interessante e algo a contar sobre processos, expansões e buscas, sobre personalidade e evolução.
Olhava da janela do avião frágeis montinhos de terra que se pronunciavam aqui e ali, como a provocar o mar.
Algumas ilhas eram um pouco maiores e denunciavam penhascos, guarnecidos de casas brancas enfileiradas, que se debruçavam na água, dando a entender que homem e mar dançam por ali uma melodia perigosa e sedutora.