Na primeira vez em que a menina viu
o mar, saiu correndo de braços abertos em direção à água grande. A atitude,
misto de maravilha e euforia, nem combinava muito com a criança, que era pouco
dada a aventuras aquáticas, tendo prevenção inclusive com relação à banheira de
casa, que para os seus pequenos anos mais parecia uma piscina profunda.
São muitos os encontros com a água.
Pisar descalça na grama molhada, trilhar em busca da cachoeira, acolher a chuva
mansa que acalma ao repetir sua música na vidraça. Talvez não possamos nos
lembrar do primeiro encontro, quando ficamos, abrigados ao longo de 9 meses, em
um útero repleto da água do corpo da mãe.
“Eu venho desse reino generoso,
onde os homens que nascem dos seus verdes
continuam cativos, esquecidos,
e contudo profundamente irmãos
das coisas poderosas, permanentes
como as águas, o vento e a esperança.”
Thiago de Mello,
Amazônia, Pátria da Água
Mas não somos os únicos que
celebram o encontro com a água. Me lembro de uma chuva, que chegou de surpresa,
após dias de seca. Saímos de carro, dando carona para uma perereca no capô.
Depois de alguns metros percorridos na estrada de terra, notei algo que se
movia nas poças d’água. Diminuímos a velocidade. Pareciam dois sapos bem grandes.
Mas não. As asas se abriram e duas corujas se delinearam pelos ares após o
banho ao entardecer. Os bichos festejam a água.
Nós, humanos, somos
cerca de 70% de água e temos uma relação de amor, sobretudo de vida, com a água.
Infelizmente, a relação de amor pode se transformar em relação de morte, como
mostra, em parte, o documentário canadense Marcas
da Água (Watermark), ao apontar a exploração da água em diversas partes do
mundo, um jogo perigoso que se faz ao moldar a natureza pela intervenção
industrial e não o contrário. O documentário mostra, em escala global, os
prejuízos que cada um de nós já deve ter observado localmente.
“Não existe incompatibilidade entre
agricultura e preservação ambiental. Ao contrário. Uma agricultura sábia
preserva o meio ambiente.”
Antonio
Donato Nobre,
documentário Lei da Água
Além de permitir
a vida, não apenas a nossa, mas a de todos os seres, a água, quando observada,
também nos ajuda a compreendê-la. EmNa Luz da Verdade, Abdruschin faz uma referência à importância do movimento,
que é uma lei da natureza, fazendo uma analogia com a água:
“Pensai
também num riacho alegremente murmurante. Como é deliciosa a sua água, como é
refrescante e vivificante, oferecendo refrigério a todos os sedentos e com isso
trazendo alegrias e proporcionando bênçãos no percurso que segue. Se, contudo,
dessa água, aqui e acolá, uma pequena parte se separa, ao saltar de modo
independente para o lado, então aquela parte que se separou fica, na maioria
dos casos, logo retida e inerte, qual pequena poça, que, em sua separação,
perde rapidamente o frescor e a limpidez, exalando mau cheiro, porque, sem
movimento, pouco a pouco se deteriora, devendo tornar-se ruim e podre.”
“Se na alma dos rios estão as encantarias – o lugar habitado pelos
encantadores; se nas margens estão as casas, as várzeas, os pássaros, as
palmeiras – o mural da mata ou da floresta; se na epiderme dos rios navegam os
barcos; no corpo dos rios circulam os peixes. Como outras tatuagens do
imaginário na pele das águas, eles avançam, mergulham, boiam, nadam em ângulos,
isolados ou em cardumes, povoando em espécies e números impossíveis de contar
os milhares de rios.”
João de Jesus Paes
Loureiro,
Cultura Amazônica
Na mesma linha, observar uma gota
d’água nos faz entender um fenômeno simples e relevante.“Não
há, às vezes, bacilos na água, no ar, que possuem força para destruir corpos
humanos, e que não são percebidos pelos olhos? Todavia se tornam visíveis
através de instrumentos aperfeiçoados. Quem ousará ainda depois disso afirmar
que não encontrareis coisas novas até agora desconhecidas, tão logo aperfeiçoardes
melhor tais instrumentos?”, escreve ainda Abdruschin.
A reflexão sobre a gota d’água lembra que nem tudo o que
existe a gente vê. E nem por isso as coisas deixam de existir. Quantos são os
segredos que nossos olhos não sabem enxergar? Os povos antigos, conectados de
forma intensa com as águas, terras e matas, tinham uma percepção mais profunda
sobre as forças na natureza e a certeza da existência dos seres que cuidavam
das florestas.
“A floresta esconde
olhos que espreitam, que perscrutam, que vigiam. A floresta não tem um só olho.
Eles são incontáveis. E não são seus olhos, são olhos que nela se escondem. As
folhas escondem olhos. Olhares vagam por entre os troncos de gigantescas
árvores. Os escuros escondem olhos. São, portanto, multidões de olhos
espalhados nas infinitas faces misteriosas da floresta.”, escreve João de
Jesus Paes Loureiro em Cultura Amazônica.
Se os olhos da floresta estão abertos, talvez os nossos
precisem se abrir para permitir que o futuro nos traga ainda novos encontros
com a água. Se os rios das cidades grandes estão sujos,os rios das
nossas ações e dos nossos quereres também estão poluídos de ganâncias e
cegueiras. E se eles forem limpos? Por qual rio podemos começar?
“Como ele sempre dissera: o rio e o coração,
o que os une? O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre
nascentes, sempre nascendo.”
Em uma época em que há tanto disponível nas prateleiras, pode parecer desnecessário criar algo com as mãos. Esse labor, no entanto, vai ao encontro de uma necessidade mais profunda: a reconexão com processos que se ligam à essência da própria vida. Mais do que o resultado material das atividades, o que importa é a transformação vivenciada no interior do próprio ser humano.
“Os pais terrenos oferecem proteção e ajuda para a época que o espírito necessita, a fim de conduzir de maneira plena e autorresponsável seu novo corpo terreno; depois, porém...”