Enquanto um consegue enxergar no trânsito a oportunidade de ouvir uma boa música, o outro só vê irritação e azar. Enquanto um contorna os problemas cotidianos com mais otimismo do que reclamações, o outro se aborrece com o primeiro farol vermelho que enfrenta pelo caminho. É verdade que cada pessoa tem a sua lente única de enxergar a vida. Lente esta permeada por experiências anteriores, anseios íntimos e pela própria personalidade. Mas, independentemente de qualquer cenário externo, é possível dominar o caos mental e, num pacto entre mente e coração, descobrir um sentimento chamado contentamento.
Cada um procura este tal contentamento de um jeito ou em um determinado lugar. Há os que tentam encontrá-lo no consumo e na satisfação de desejos incessantes, mas sendo um dos desejos satisfeito, logo um novo se coloca no lugar... e o desejo acaba sendo sempre maior que o contentamento!“Quando o ser humano terreno de hoje fala de felicidade, entende ele com isso o ganho de valores terrenos materialmente palpáveis e visíveis. Sua felicidade é uma felicidade aparente, amarrada ao espaço e ao tempo, não tendo nenhuma semelhança com a bem-aventurada felicidade espiritual”, comenta a escritora Roselis von Sass em O Livro do Juízo Final.
As necessidades físicas já foram preenchidas e agora a sociedade está à procura de satisfações inatingíveis, dizem especialistas em tendências de consumo. A tônica do consumo não está mais no novo, mas sim no conforto que gera segurança, em algo que não alimente o corpo, mas sim a alma. Se os “marqueteiros” já descobriram por onde anda a carência do homem, será que nós próprios não poderíamos investir no preenchimento desta lacuna?
Uma das visões exploradas no livro Felicidade, de Eduardo Gianetti, sugere o seguinte:“O que não dá para engolir é a ideia de que a felicidade é alguma coisa que você compra, embrulha e leva para casa, como aspirinas e picolés. A felicidade não é algo ligado ao ter, mas ao fazer. Ela não é um humor ou um estado de ânimo, por mais exaltados e duradouros que sejam, mas o resultado de uma vida bem conduzida, ou seja, das escolhas e valores que definem nosso percurso.” Como tudo na vida, essa ideia faz pensar que também o contentamento não seria algo casual, mas sim o resultado de uma busca.
Um outro conceito interessante associado ao contentamento pode ser o equilíbrio: por exemplo, o equilíbrio entre trabalho e descanso. Isso significa permitir a si mesmo momentos de desligar o botão da mente e divagar um pouco pela vida buscando, cada um a seu modo, instantes de uma paz inspiradora.
O equilíbrio entre dar e receber também pode ter uma abordagem interessante. Se não temos contentamento, não adianta desejar que ele venha na bandeja ofertada pelo mundo, pelo marido, pelo vizinho ou pelo chefe. Se apenas recebermos, nem sempre seremos felizes e nem sempre poderemos nos apropriar da dádiva realmente. Soma-se a isso o fato de que esperar do outro gera expectativas. Como sugerem Roberto Johnson e Jeny Ruhl no livro Contentamento: “Mantenha suas expectativas pequenas que seu contentamento será grande”. É, é capaz mesmo que um grande vilão do descontentamento sejam as enormes expectativas fantasiosas. Elas são capazes de fazer qualquer relacionamento infeliz.
Se, apesar dos tantos avanços tecnológicos, o mundo está doente na economia, nas epidemias, no meio ambiente e assim por diante, nossa alma pode também não estar muito saudável. Aliás, o mundo externo não deixa de ser um reflexo de quem somos. Por isso, precisamos aprender a medicar nosso “eu interior” para o contentamento se transformar também em algo que saia de dentro para fora e não apenas entre de fora para dentro na forma de um novo perfume. Quando vem de dentro para fora, o contentamento pode durar a vida inteira e não apenas o tamanho do frasco.
Dar uma regulada na velha e viciada lente de enxergar a vida pode também facilitar a visualização do que está faltando para alcançar o contentamento. Depois disso, pode até ser que reste um dinheirinho a mais no bolso, porque será possível aprender a amar também o contentamento que não está à venda e que as crianças pequenas conhecem bem. O contentamento simples que se alcança com o olhar virgem de quem é capaz de descobrir!
Texto revisado, publicado no periódico Literatura do Graal, número 8.