Há coisas tão belas no mundo que parecem mágica. O cristal é uma delas. Quando me dei conta que aquela delicada transparência se origina de areia incandescente, fiquei maravilhada.
Era um trabalho da faculdade: escolhemos como campo de pesquisa uma fábrica de cristais. Vi, em fornos de altíssimas temperaturas, a massa incandescente formada de areia, chumbo e outros elementos, parecendo saída do centro da Terra. Essa matéria-prima era retirada dos fornos e imediatamente modelada – por meio do sopro em um longo instrumento (a “cana de vidreiro”) – por magos que formavam objetos variados. Após o resfriamento as peças passavam por diversas etapas, do lixamento à lapidação de baixos-relevos por mestres com ares de artesãos reais, sempre com rigoroso controle de qualidade. Foi uma experiência inesquecível presenciar como uma genuína obra em cristal é o produto único da condensação de muitas vontades, esforços, sensibilidades. Quem quiser ter uma amostra pode encontrar alguns vídeos sobre a fabricação do cristal na Internet.
Depois dessa vivência passei a sentir um encanto especial pelo cristal. Recentemente quis mostrar a um querido visitante algumas peças em uma loja especializada: encantadores pássaros esculpidos em cristal com perfeição – cada minúscula pena era confeccionada na coloração adequada – perfazendo cenas com movimento e expressividade. Quanto trabalho eu vislumbrava, quanta delicadeza e dedicação naquelas obras! Meu interlocutor depois me disse: “eu gostei, mas achei caro”. Então me pus a explicar que cada uma daquelas múltiplas cores foi fruto da adição de um elemento químico específico à massa incandescente, que foi retirada dos fornos, resfriada, polida, lapidada... e que não há máquina que faça aquele tipo de trabalho – aliás, cada vez mais raro. Com o avanço da indústria e da globalização, as pessoas podem comprar peças produzidas em série, rapidamente, em materiais de qualidade inferior e com baixo custo. Mesmo que nem de longe reflitam o brilho onírico do cristal...
O que dá valor a um trabalho?
Lembro-me do trecho de um poema lido esta manhã, de Carlos Drummond de Andrade:
Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.
Permeável: que se pode atravessar, transpassar. Eis o apelo do poeta: deixai ser penetrada a dura casca que vos envolve, damas e cavalheiros, deixai adentrar o verdadeiro valor em vossas almas!
Para reconhecer o valor de um trabalho é preciso vivenciá-lo. Pressentir o esforço, a dedicação, os sonhos de que a obra é mensageira. Os produtos do trabalho que realmente encantam não são frutos de qualquer esforço, mas daquele que sonha com objetivos sublimes, aspirando à perfeição. Certo, é necessário admitir e manejar as limitações da realidade para concretizar uma obra, que do contrário jamais sairia do campo da imaginação. Mas é dessa forma, na justa equação entre o ideal e o possível, que o trabalho pode conduzir o ser humano a um grau de realização pessoal e de elevação interior. Para Abdruschin:
“Cada pessoa pode e deve aspirar por ideais, seja qual for a atividade que desenvolve aqui na Terra. Pode com isso enobrecer qualquer espécie de trabalho, dando-lhe finalidades amplas.”No livro A Verdade sobre os Incas, Roselis von Sass relata que no tempo do êxodo dos vales os incas tinham somente uma regra de vida, ensinada por seus antepassados, assim enunciada:
“O ser humano recebeu a vida de presente. Terá, porém, que se tornar digno desse presente, se quiser conservá-lo. Deve vivenciar a vida, dando-lhe sentido e firmeza através do trabalho!” Aquele povo era reconhecido por sua alegre laboriosidade, que preenchia seu cotidiano com beleza e engenhosas realizações. Naturalmente, em sua sabedoria respeitavam os princípios de uma vida equilibrada e saudável, com o devido tempo para o descanso e a introspecção.
Mais do que o tipo de trabalhado realizado, o importante é o modo como o ser humano o executa. As intenções, os pensamentos, os significados que coloca em seu fazer. No trabalho, mais do que produzir resultados materiais, formamos a nós mesmos. Nossas atitudes perante qualquer ação produzem uma vibração, que com o passar do tempo molda um modo de viver, conformando nosso próprio ser. Dessa postura resulta o ambiente em que vivemos, os frutos que oferecemos aos outros e, principalmente, a nós mesmos. Gosto de imaginar que, cada vez que uma pessoa coloca o melhor de si em um trabalho, em algum lugar um pássaro de cristal abre as asas, uma rosa desabrocha e espalha seu perfume pelo ar.
Assisti a uma reportagem sobre a fábrica de cristais que visitei no passado. Imagens mostravam os mestres artesãos em ação; depois eles falavam sobre o significado de seu trabalho: viam algo de sua alma, de sua história, espelhado no cristal que ajudavam a confeccionar. O valor daquele trabalho perpassava a devoção dos trabalhadores à sua arte – parturiente de sonhos, pássaros e flores – e em verdade não possui medida monetária. E, ainda que tudo se transforme, que muitas formas do trabalho se alterem, persiste incandescente a chama – aquela que move os seres humanos à busca de ideais, de frutos perfeitos em sua atuação, dando-lhes um brilho no olhar semelhante ao cristal.