Os pássaros de cristal

fevereiro 22, 2013

Ilustração de miolo de flor
Há coisas tão belas no mundo que parecem mágica. O cristal é uma delas. Quando me dei conta que aquela delicada transparência se origina de areia incandescente, fiquei maravilhada.

Era um trabalho da faculdade: escolhemos como campo de pesquisa uma fábrica de cristais. Vi, em fornos de altíssimas temperaturas, a massa incandescente formada de areia, chumbo e outros elementos, parecendo saída do centro da Terra. Essa matéria-prima era retirada dos fornos e imediatamente modelada – por meio do sopro em um longo instrumento (a “cana de vidreiro”) – por magos que formavam objetos variados. Após o resfriamento as peças passavam por diversas etapas, do lixamento à lapidação de baixos-relevos por mestres com ares de artesãos reais, sempre com rigoroso controle de qualidade. Foi uma experiência inesquecível presenciar como uma genuína obra em cristal é o produto único da condensação de muitas vontades, esforços, sensibilidades. Quem quiser ter uma amostra pode encontrar alguns vídeos sobre a fabricação do cristal na Internet.

Depois dessa vivência passei a sentir um encanto especial pelo cristal. Recentemente quis mostrar a um querido visitante algumas peças em uma loja especializada: encantadores pássaros esculpidos em cristal com perfeição – cada minúscula pena era confeccionada na coloração adequada – perfazendo cenas com movimento e expressividade. Quanto trabalho eu vislumbrava, quanta delicadeza e dedicação naquelas obras! Meu interlocutor depois me disse: “eu gostei, mas achei caro”. Então me pus a explicar que cada uma daquelas múltiplas cores foi fruto da adição de um elemento químico específico à massa incandescente, que foi retirada dos fornos, resfriada, polida, lapidada... e que não há máquina que faça aquele tipo de trabalho – aliás, cada vez mais raro. Com o avanço da indústria e da globalização, as pessoas podem comprar peças produzidas em série, rapidamente, em materiais de qualidade inferior e com baixo custo. Mesmo que nem de longe reflitam o brilho onírico do cristal...

O que dá valor a um trabalho?

Lembro-me do trecho de um poema lido esta manhã, de Carlos Drummond de Andrade:

Imenso trabalho nos custa a flor.

Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.

Primavera não há mais doce, rosa tão meiga

onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Permeável: que se pode atravessar, transpassar. Eis o apelo do poeta: deixai ser penetrada a dura casca que vos envolve, damas e cavalheiros, deixai adentrar o verdadeiro valor em vossas almas!

Para reconhecer o valor de um trabalho é preciso vivenciá-lo. Pressentir o esforço, a dedicação, os sonhos de que a obra é mensageira. Os produtos do trabalho que realmente encantam não são frutos de qualquer esforço, mas daquele que sonha com objetivos sublimes, aspirando à perfeição. Certo, é necessário admitir e manejar as limitações da realidade para concretizar uma obra, que do contrário jamais sairia do campo da imaginação. Mas é dessa forma, na justa equação entre o ideal e o possível, que o trabalho pode conduzir o ser humano a um grau de realização pessoal e de elevação interior. Para Abdruschin: “Cada pessoa pode e deve aspirar por ideais, seja qual for a atividade que desenvolve aqui na Terra. Pode com isso enobrecer qualquer espécie de trabalho, dando-lhe finalidades amplas.”

No livro A Verdade sobre os Incas, Roselis von Sass relata que no tempo do êxodo dos vales os incas tinham somente uma regra de vida, ensinada por seus antepassados, assim enunciada: “O ser humano recebeu a vida de presente. Terá, porém, que se tornar digno desse presente, se quiser conservá-lo. Deve vivenciar a vida, dando-lhe sentido e firmeza através do trabalho!” Aquele povo era reconhecido por sua alegre laboriosidade, que preenchia seu cotidiano com beleza e engenhosas realizações. Naturalmente, em sua sabedoria respeitavam os princípios de uma vida equilibrada e saudável, com o devido tempo para o descanso e a introspecção.

Mais do que o tipo de trabalhado realizado, o importante é o modo como o ser humano o executa. As intenções, os pensamentos, os significados que coloca em seu fazer. No trabalho, mais do que produzir resultados materiais, formamos a nós mesmos. Nossas atitudes perante qualquer ação produzem uma vibração, que com o passar do tempo molda um modo de viver, conformando nosso próprio ser. Dessa postura resulta o ambiente em que vivemos, os frutos que oferecemos aos outros e, principalmente, a nós mesmos. Gosto de imaginar que, cada vez que uma pessoa coloca o melhor de si em um trabalho, em algum lugar um pássaro de cristal abre as asas, uma rosa desabrocha e espalha seu perfume pelo ar.

Assisti a uma reportagem sobre a fábrica de cristais que visitei no passado. Imagens mostravam os mestres artesãos em ação; depois eles falavam sobre o significado de seu trabalho: viam algo de sua alma, de sua história, espelhado no cristal que ajudavam a confeccionar. O valor daquele trabalho perpassava a devoção dos trabalhadores à sua arte – parturiente de sonhos, pássaros e flores – e em verdade não possui medida monetária. E, ainda que tudo se transforme, que muitas formas do trabalho se alterem, persiste incandescente a chama – aquela que move os seres humanos à busca de ideais, de frutos perfeitos em sua atuação, dando-lhes um brilho no olhar semelhante ao cristal.



Leia Também

Conviver: exercício de ser

setembro 26, 2017

Ilustração de limões

Uma amiga me contou certo dia sobre o martírio dos almoços em família aos domingos, e sobre como naquelas ocasiões sofria críticas veladas por conta de seu estilo de vida e de suas escolhas.

Leia Mais
O amor é um presente

dezembro 17, 2024

 
Leia Mais
Conexão ao alcance das mãos

dezembro 14, 2024

 
Em uma época em que há tanto disponível nas prateleiras, pode parecer desnecessário criar algo com as mãos. Esse labor, no entanto, vai ao encontro de uma necessidade mais profunda: a reconexão com processos que se ligam à essência da própria vida. Mais do que o resultado material das atividades, o que importa é a transformação vivenciada no interior do próprio ser humano.
Leia Mais