A arte de reconstruir

outubro 30, 2024


Sibélia Zanon

O vento forte leva o telhado da casinha azul.  A pressa derruba a xícara preferida, que se esparrama em cacos pelo chão. Quando algo se quebra, pode nascer um silêncio. Pode nascer uma dor. Pode nascer uma urgência. 

Uma forte pressão impulsiona grandes transformações. Ela parece vir do lado de fora, mas também lateja do lado de dentro. Existe a demanda por uma constante revisão na relação consigo mesmo, na relação com o outro, na relação com o sagrado. A sensação de incompletude cutuca para que cada um busque aquilo que possa ser seu próprio esteio.

Tudo o que não se sustenta acaba ruindo. Fragmentações, cortes e hiatos têm seus motivos e, por vezes, são um chamado. Às vezes, a base de um relacionamento está frágil, às vezes alguma atitude agride o pulso da natureza. Tudo o que perturba é evidenciado. 

O materialismo pelo materialismo surge como um prédio em risco de desabamento. Nasce o desejo de ter terra firme debaixo dos pés porque só aquele que tem os pés firmes no chão é capaz de ousar um voo seguro.
“Inúmeras são as coisas que no colossal maquinismo do Universo coparticipam na ‘vida’ do ser humano; nada existe, porém, a que o próprio ser humano não tenha inicialmente dado origem. Ele fornece os fios com os quais, no infatigável tear da existência, é tecido o manto que terá de usar”, escreve Abdruschin no livro Na Luz da Verdade.

É possível reconstruir um telhado? Como seria colar as peças da xícara partida? Que habilidades precisam nascer para ressignificar o que foi rompido? São muitos os fios da reconstrução e é preciso escolher quais deles queremos usar.

Usando a técnica chamada kintsugi, artesãos japoneses colocam arte no reparo. Os cacos da xícara quebrada são reorganizados e colados com uma mistura de resina e ouro. Os remendos da peça não ficam escondidos. Ao contrário, os fios de ouro são evidentes e chamativos. A cicatriz permanece ali para lembrar da queda e da possibilidade de reconstrução.

A cicatriz também se faz visível em pessoas que compartilham suas vulnerabilidades, dificuldades e processos de cura. Com a beleza e a coragem de ressignificar a própria trajetória e postura diante da vida, elas contribuem com inspiração. 

É fato que, às vezes, conseguimos reagir a algumas quedas como as crianças. Reconhecemos o chão e basta usar as mãos espalmadas para nos impulsionar e reerguer o corpo. Pode ser simples. Levantar pode trazer alegria. Outras vezes, pode ser bem difícil. Precisamos de uma grande reformulação interna, precisamos de mãos externas nos ajudando a levantar e também de novos materiais nunca antes usados para unir nossos pedaços quebrados. Precisamos elaborar uma aceitação radical da realidade antes de nos reerguer.

Os diversos tipos de dor, perda ou luto exigem alguma medida de reformulação. Quando se perde alguém querido, quando se perde uma habilidade, quando se perde algo que parecia fornecer esteio ou segurança… algo novo deseja ser delineado.

Nem sempre precisamos viver a perda para perceber a necessidade de alguma reconstrução. Não é preciso esperar pelos problemas graves para começar uma mudança. Perceber outras xícaras ruindo pelo mundo e covivenciar aquela dor pode ser um jeito de aprender e revisar o cuidado antes que um objeto escorra das próprias mãos.

A cada vez, novos fios podem ser escolhidos para amarrar a reconstrução e alguns reparos podem merecer os melhores fios de ouro. Lembrar que existe a possibilidade da reconstrução é reconhecer que existe algum chão firme debaixo dos pés, mesmo quando a estabilidade da casinha azul esteja em risco
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