Eu saltitava
pela casa da minha avó com uma boneca nos braços, inventando histórias, até que
resolvi esticar o percurso para dentro da sala onde ela trabalhava. Como outras
vezes, fiquei olhando o meticuloso trabalho na máquina de costura, mas dessa
vez o pedido saiu num impulso: “Oma, faz um vestido pra minha boneca?” E com a
mesma naturalidade, ela sorriu e começou a separar os retalhos de tecido: um
retalho rendado roxo forte para o corpo do vestido, um pedaço de tule branco
para a saia, uma rendinha branca para o acabamento no decote... Eu observava a habilidade
com que minha avó fazia surgir aquele vestido, como num passe de mágica. Vi
diante de mim um traje de princesa, daquelas dos contos de fada que povoavam
minha imaginação. Daí para frente, aquele passou a ser o vestido preferido,
inigualável, guardado sempre em lugar de destaque.
Anos depois,
eu era professora de educação infantil e fazíamos pão: analisamos a receita,
medimos os ingredientes, misturamos a massa, por fim cada criança modelou um
pãozinho redondo. Colocamos todos os pães em uma forma e observamos a
transformação da massa ao assar, em um forno elétrico cuidadosamente instalado
na sala de aula. Após retirar as “obras” do forno e esperar esfriar, era hora
de comer. Porém o Andrey, um menino de quatro anos, pediu: “Tia, posso levar
pra casa?” Então embrulhou seu pão com todo o zelo em guardanapos e o guardou
em sua gavetinha de material. Ao chegar a mãe ao final da aula para buscá-lo,
foi correndo apanhar sua preciosidade: “Mãe, olha o que eu fiz!”, com olhos
brilhantes deu-lhe sua criação de presente. No dia seguinte, ela me pedia a
receita: o Andrey queria que fizessem em casa, pois aquele era o pão mais
gostoso que já tinha provado...
Costurar,
fazer pão... Atividades simples, artesanais, cotidianas, que ganharam densos
significados. As duas histórias narradas remetem à infância. Parece que nessa
fase da vida estamos mais atentos ao mistério das coisas. A arte-educadora
Edith Derdyk, no livro Formas de Pensar o Desenho, observa: “A criança é um ser
em contínuo movimento. Este estado de eterna transformação física, perceptiva,
psíquica, emocional e cognitiva promove na criança um espírito curioso, atento,
experimental. Seu olhar aventureiro espreita o mundo a ser conquistado. Vive em
estado de encantamento diante dos objetos, das pessoas e das situações que a rodeiam.”
Porém: “Gente
grande é diferente. É produto acabado, conhece seus limites, cresce dentro de
uma roupa que se torna cada vez mais apertada. A vida sedentária lhe dá ares
envelhecidos. O passado é memória acumulada: fatos inegáveis. O futuro é um rio
de margens feitas. O presente são representações de afirmações. [...] O tempo é
cerceado pelo cotidiano. A imensidão do céu já não a afeta tanto física nem
existencialmente.”
Com o passar
dos anos, distanciamo-nos afetivamente de nossos fazeres, deixando de descobrir
e criar, atuando mecanicamente na esperança da chegada do próximo fim de
semana... E quando ele chega, por vezes mergulhamos em um novo turbilhão,
buscando diferentes tipos de estímulos como “distração”. Então permanecemos de
fato distraídos, novamente desconectados de nós mesmos, do aqui e agora onde
poderíamos viver experiências reais e significativas.
Para Edith
Derdyk, “A criança está integralmente presente em tudo o que faz,
principalmente quando existe um espaço emocional que o permita.” Para encontrar
significado no cotidiano, é preciso estar atento aos pequenos fatos. Olhar para
os processos que estão por trás dos resultados. Descobrir o milagre escondido
em cada atividade humana e da Natureza.
As
arte-terapeutas Sara Païn e Gladys Jarreau, no livro Teoria e Técnica da
Arte-Terapia, realçam o processo subjacente às obras humanas: “A criação de um
objeto é sempre uma aventura, um desafio dramático no qual sujeito é o autor. É
preciso vencer a matéria, fazer sair a forma a partir do amorfo, é preciso
tirar um sentido daquilo que não tem nenhum. A folha branca, a terra bruta,
representando ao mesmo tempo o vazio, a continuidade do nada e a totalidade do
poder, isto é, a enorme dimensão do possível antes que o real não o toque. É
preciso encontrar rápido um objeto para limitar o real ou confiar bem na
capacidade de espera de maneira a deixar vir a imagem da forma que o tudo e o
nada tomam para cada indivíduo.”
Contudo, toda
essa riqueza passa despercebida quando vivemos distraídos... Quantas vezes nos
damos conta de processos corriqueiros como a nossa própria respiração? Através
dela poderíamos nos descobrir conectados com a pulsação do Universo, com o
permanente movimento de dar e receber que sustenta a Vida em suas múltiplas
manifestações... Se analisarmos objetivamente, veremos que os mesmos processos básicos,
que nos faziam sentir vitalidade e encantamento na infância, continuam em
andamento. Porém, a maioria de nós perdeu paulatinamente a consciência que costuma
acompanhar os inícios, as primeiras experiências. Por isso muitas vezes não
enxergamos o profundo significado de cada pequeno gesto, seja material ou
imaterial, que preenche nossos dias.
“Muitas vezes as pessoas ficam admiradas ante os atos instintivos dos animais. Atribuem aos animais um sentido especial, que aos seres humanos falta por completo ou deixaram que se atrofiasse."