“Observa, e quando pensas e sentes, logo terás a prova de
que toda a vida real só pode ser na verdade a espiritual, na qual
unicamente se encontram a origem e o desenvolvimento.”
Abdruschin, Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal
O jovem Heinrich era um estudante de Viena quando sua vida não poderia estar melhor. Berço de nomes como Mozart, Strauss e Rilke, a capital fervilhava em prosperidade e conhecimento na época que antecedia a Segunda Guerra Mundial.
Até que em um dia, desavisado como o destino, tudo mudou. A iminente Grande Guerra e os conflitos crescentes na região levaram o estudante a fugir da capital austríaca e deixar tudo para trás. Às pressas, o rapaz não viu outra alternativa senão sair do local junto aos milhares que partiam. Rumou logo para o país vizinho, onde sua família residia, para encontrá-los.
O que ele não sabia é que sua família já havia fugido e partido enquanto ele ia para casa. O jovem, que se viu sem seus estudos, sem emprego, sem casa, sem planos e, em breve, sem sua terra natal, logo descobriria que havia perdido também sua família.
Teria também lhe escapado seu futuro?
Se o destino é como uma locomotiva que, assim como os dias, nunca se atrasa ou adianta, quem sabe que desfecho o aguardava pontualmente na próxima estação da vida?
Na estação em que Heinrich estava, o que sabemos é que multidões em fuga lotavam os vagões que seguiam para o estrangeiro. Ali no meio de tanta gente, o rapaz provavelmente contemplava o que restava quando tudo se vai. O que sobrou? Seu corpo? Seus pensamentos? O que levava no coração? Alguns bens? A língua materna, que muito em breve também entraria em desuso em outro país?
No entanto, em uma das paradas em que estava rumo à casa paterna, um grito — pelo que parece contar a história — atravessou os vagões. Era o destino, por um triz e um chapéu. O chapéu! Naquele torvelinho de pessoas, sua irmã, indo embora para nunca mais voltar, reconheceu o característico acessório e encontrou Heinrich próximo ao trem. Às vezes tudo que o destino precisa é de apenas alguns centímetros da ponta de um chapéu para novamente entrar nos trilhos.
Após o reencontro com a família, o jovem logo percebeu que havia mais a se desprender da vida usual que levava, pois até os hábitos e costumes pareciam fora de lugar. Ao aportar do navio no Brasil, ele e os seus viram-se com algumas bananas para comer e, sem nunca terem visto algo parecido, colocaram a fruta no pão com casca e tudo para a refeição. Não demorou muito e também tiveram de se desfazer de alguns bens que traziam em troca de mais alimento. Roupas e itens pessoais eram vendidos na urgência da fome, escoando rapidamente o pouco que restava do passado.
Após algum tempo de vida em uma colônia de imigrantes em uma fazenda, o jovem e a família mudaram-se para um bairro tranquilo e afastado do centro da capital paulista. Sem grandes acontecimentos, a pacata rotina, repleta de restrições, deu lugar ao restabelecimento da vida familiar e de um emprego que Heinrich conseguiu como operário em fábricas da região. Sem grandes viagens, sem professores, sem a carreira que provavelmente o aguardava em outra vida, em outro tempo, em outro lugar. Em outro destino…
Certo dia, um dos chefes de uma das fábricas em que trabalhava pediu à Heinrich que lhe ajudasse a entender alguns livros e revistas em alemão da área de engenharia de alimentos. Assim foi, de periódico em periódico, até que a leitura transformou-se em estudo autônomo. Sem faculdade, mestres, nem provas, Heinrich passou a ler e aprender tudo em seus próprios cadernos.
Tempo vai e vem, e o conhecimento que possuía de seu próprio estudo mostrou-se único e pioneiro. Heinrich tornou-se um dos maiores especialistas em engenharia de alimentos de seu campo em todo Brasil.
Quando começou a dar treinamentos, voltou em visita à Europa, desta vez de avião, para trocar conhecimento com especialistas em países de alto desenvolvimento técnico, como a Alemanha. O estudante de outrora, sem lenço ou documento, pisou novamente em sua terra, agora como professor.
Nos idos da maturidade, era visto sempre em seu quintal. Nele, como que brincasse com o destino da juventude, a cadeira dos jantares europeus se transformava em cadeira de praia de alumínio. De chinelo, abria seus livros e revistas e estudava com entusiasmo, como se fosse a primeira vez, enquanto que o palpitar da festiva comunidade acadêmica dava lugar ao barulho da meninada na rua jogando bola.
Roselis von Sass, no Livro do Juízo Final, nos conta que “não é o lugar em que nos encontramos nem as exterioridades que tornam as pessoas felizes; a felicidade provém do íntimo, daquilo que o ser humano sente dentro de si mesmo”.
Talvez, quando tudo está perdido, reste uma vontade.
Por um triz, um chapéu e alguns livros e revistas, trilhos e trens deram seu jeito de chegar. Parece que o destino não é afeito a fronteiras: viaja a pé, em navios e aviões, por água, rua, terra e mar.
Quando pequena, eu também pude visitar seu quintal — e mais de uma vez. Porém, não era todo lugar por ali que estava livre para brincar, pois um cantinho permanecia sempre reservado. Nele, dividindo espaço com os vasos da minha avó, de destino arado pela vida, meu avô, estudando, florescia como podia. Semeava e colhia, exatamente ali onde a vida o plantou.
Caroline Derschner