Lembro-me de um colega muito experiente em realizar trilhas pelas montanhas, mochila nas costas, acampando pelo caminho e percorrendo longas distâncias. Ele me contou que fez uma caminhada com um grupo de “marinheiros de primeira viagem”, sem experiência na atividade. Em dado momento, ele relatava, uma mulher estava se sentindo muito cansada e queria parar de caminhar. Mas o grupo ainda não havia alcançado o ponto em que pararia para acampar e descansar naquele dia – era preciso prosseguir, antes que anoitecesse. Meu colega, então, aproximou-se da mulher e passou a caminhar ao seu lado, dizendo: “Continue andando, pode ser bem devagar, mas não pare.” Sem muito entusiasmo – mas provavelmente também sem forças para resistir – a peregrina se entregou à orientação recebida, caminhando lentamente ao lado dele. Depois de alguns metros, meu amigo pediu que ela parasse e observasse o trecho que havia percorrido: “Está vendo o quanto caminhou? Se tivesse ficado parada, veja o ponto lá atrás onde você ainda estaria.” Naturalmente, essa constatação deu novo ânimo à mulher, agora já algo recuperada da condição extenuante em que se encontrava, para prosseguir em sua jornada. Meu colega enfatizou que sempre procurava dar essa orientação para iniciantes, incentivando-os a prosseguir, mesmo com passos modestos.
Já faz muitos anos que ouvi essa história, mas guardei a imagem comigo e me recordei dela em vários momentos da vida. Pude constatar, por experiência própria, o quanto pequenos passos fazem diferença no final do dia. No passar dos anos. No transcorrer da existência.
Somos seres que aprendem, constroem esquemas e tendem a reproduzir padrões. Buscando maximizar nosso êxito, economizar energia e reduzir a incerteza, criamos hábitos de pensamento, sentimento e ação. Repetimos posturas que “deram certo” no passado, seja conosco mesmos em certas situações, seja tomando como exemplo outras pessoas, que nos servem de referência. Porém, geralmente esse processo não envolve plena consciência e reflexão, de maneira que podemos generalizar condutas que podem até ter sido funcionais em dado momento ou contexto, mas que não seriam as mais saudáveis e construtivas sob uma perspectiva mais abrangente.
E, interessante, esses hábitos aprendidos são por vezes confundidos com nossa essência, sendo definidos como um “jeito de ser”, como preferências e inclinações que caracterizam nossa “personalidade”. Em contrapartida, a vida não para de nos apresentar desafios, circunstâncias de vários tipos que provocam desconforto e, eventualmente, sugestões diretas, estimulando-nos a uma revisão pessoal mais profunda e, quem sabe, à constatação da necessidade de mudança de padrões arraigados. Seja na esfera dos relacionamentos pessoais, na vida profissional, no âmbito da saúde, no campo financeiro, ou em seu próprio mundo interior: o leque de possibilidades é inesgotável. De algum modo – ou de muitos modos ao mesmo tempo – somos levados a considerar que não adianta continuar esperando que a solução venha de fora: é preciso, em primeiro lugar, mudar a si mesmo.
Entretanto, em uma época em que o resultado é colocado acima do processo, em que a quantidade é mais valorizada que a qualidade, em que o exterior pesa mais que o interior, não raro esperamos que a mudança almejada ocorra instantaneamente. Sentimo-nos ansiosos e por vezes sem muita compreensão e paciência conosco próprios: queremos encontrar a solução “para ontem” e nos sentimos frustrados quando as respostas não chegam rapidamente. Gostaríamos de abreviar o sofrimento e nos livrar logo do desconforto ligado à insegurança dos primeiros passos, que precisam ser ensaiados em terreno desconhecido.
O famoso axioma “a Natureza não dá saltos” expressa o processo de desenvolvimento necessário a todos os sistemas vivos. Para colher o fruto, é preciso investir na semente. Estamos tão acostumados a comprar tudo pronto no supermercado, que esquecemos que a gestação de uma semente ocorre no silêncio e na escuridão da terra, exigindo uma série de condições (luz, água, ar) para que seu potencial venha à luz. É preciso germinar, virar broto, árvore jovem, passar por vários estágios até virar uma árvore frondosa e produtiva. E esse processo não é linear: por vezes vendavais quebram galhos, secas ameaçam a sobrevivência, predadores vêm se banquetear nos tenros brotos... Mas, passo a passo, estágio a estágio, dia após dia, a vida vai se afirmando. Quando nos damos conta: “Nossa, como cresceu!” “Parece que passou tão rápido...” Somente o jardineiro, o educador, o cultivador de si próprio sabe de quantos pequenos e insistentes passos foi feita aquela jornada.
Recentemente fui chamada a atenção para o fato de que a palavra “disciplina” provém de discípulo, correspondendo à “educação que o discípulo recebia de seu mestre”. O escritor Stephen Covey observa que se pode ser discípulo de uma filosofia, de um conjunto de princípios ou valores, de um objetivo ou meta a atingir, ou ainda de uma pessoa que represente essa meta. O autor ressalta que essa disciplina vem de dentro, de um exercício de vontade independente.
Tenho observado que cultivar novos hábitos e desenvolver as diferentes dimensões de nosso ser requer disciplina. Não aquela disciplina que representa um fardo opressor a ser carregado em quaisquer circunstâncias, sem flexibilidade e sem justo equilíbrio. Mas, sim, a disciplina que consiste em um exercício de vontade consciente no sentido de percorrer passo a passo a jornada pretendida. E esses passos podem ser muito pequenos e mesmo lentos, de acordo com as possibilidades do caminhante. Porém, como ensinou meu colega montanhista, precisam ser contínuos e consistentes.
Pequenas ações podem engendrar grandes mudanças e nutrir projetos duradouros. Para quem tem uma dieta desregrada, por exemplo, passar a comer uma laranja todas as manhãs ou aumentar a ingestão de água ao longo do dia podem representar mudanças significativas. Para quem não movimenta o corpo, fazer um pequeno alongamento ao acordar ou optar por caminhar um pequeno trajeto ao invés usar uma condução motorizada podem desencadear processos muito gratificantes. Para quem se sente inquieto, ansioso, disperso, dedicar cinco minutos em sua rotina diária para simplesmente sentar, respirar profundamente e silenciar a mente pode descortinar novos caminhos dentro de si. Para quem facilmente entra em conflitos, decidir não reagir impulsivamente e fazer um esforço de autocontrole no sentido de ouvir com atenção antes de falar pode proporcionar uma nova perspectiva dos desafios vivenciados. Pequenos passos, realistas e sustentáveis, vão formando o alicerce para passos maiores, assim como uma grande construção se faz de muitos pequenos gestos adotados com consistência ao longo do tempo – ainda que ocorram chuvas e imprevistos, que seja necessário refazer alguma etapa, o projeto é levado à frente por uma intenção consciente e determinada.
Para mim, fazer bordados em tela é uma atividade muito pedagógica. Não adianta se afobar pelo resultado: leva tempo, requer paciência e perseverança. São horas, dias e mesmo anos a fio, bordando ponto a ponto, sem pressa, com precisão e cuidado. Embora analise o caminho percorrido e avalie o quanto falta para completar o trabalho, deleito-me com o processo: a textura da lã, as cores e formas, os tantos pensamentos que vão perpassando e se ajeitando enquanto faço o bordado. Cada etapa realizada, por menor que seja, é uma satisfação: percebo que algo do meu ser é nutrido com esse processo. E, após a longa jornada, quando o alvo é alcançado e o trabalho está terminado, confiro ainda várias vezes para ver se não há mais nada a retocar: é como se não quisesse me despedir tão rápido do percurso que foi meu companheiro de viagem. Mas, feitas as despedidas, não tarda muito a surgir o desejo de começar um novo projeto – ou então a própria vida se encarrega de colocar no caminho novos desafios: é como se fôssemos eternos aprendizes, que, após concluírem as tarefas com êxito, passam para a próxima série escolar, em um processo no qual, mais do que os resultados nos exames, o que realmente importa é o aprendizado gravado no próprio interior.
Daniela Schmitz Wortmeyer
“O caminho lhe será tão facilitado com delicado zelo, como os primeiros passos duma criança são amparados pela mãe. Se houver coisas de sua vida de até agora que o amedrontem, assustem e que preferiria deixar dormir continuamente… inesperadamente será colocado à frente delas! Tem de resolver, agir. Visivelmente as circunstâncias o impelem para isso. Se ousar, então, dar o primeiro passo confiante na vitória da boa vontade, abrir-se-á o nó fatídico, passará por ele e estará livre disso.”