A paz possível

fevereiro 20, 2014


Sibélia Zanon



Observar o pica-pau comendo embaixo do abacateiro me fez pensar sobre a paz. Talvez ler essa frase leve alguns a imaginar a beleza bucólica da cena, a tranquilidade de se ter um abacate fresco disponível, a liberdade de ser pássaro... Mas o que me chamou a atenção naquela cena foi outra coisa.
O pica-pau-de-cabeça-amarela não parecia exclusivamente entregue ao deleite cremoso da fruta. Ele estava atento. A cada bicada, uma parada: corpo ereto, olhar observador, avaliando riscos. O topete longo amarelo dançava para baixo, em direção à fruta e voltava, ondulando para cima, em vigília. “É seguro dar a próxima bicada? Nenhum predador por perto?”
A paz é um artigo de luxo que não se pode comprar. Poucos a possuem. Mas será que nem os pássaros usufruem dela embaixo do abacateiro?
Sobre a luta na natureza, Abdruschin, pensador alemão, propõe a seguinte reflexão:
“Mesmo na luta entre os animais só existem bênçãos, nenhuma crueldade. Basta que se observe bem qualquer animal. Tomemos, por exemplo, o cão. Quanto mais atenciosamente for tratado tal cão, tanto mais comodista se tornará, mais preguiçoso. Se um cão vive na sala de trabalho de seu dono e este atenta, cuidadosamente, para que o animal jamais seja pisado, ou apenas empurrado, mesmo que se deite em lugares onde constantemente esteja em perigo de poder ser machucado sem intenção, como junto à porta, etc., isso redunda apenas em prejuízo do animal.
Em bem pouco tempo o cão perderá sua própria vigilância. Pessoas ‘de bom coração’ dizem, atenuando ‘afetivamente’, talvez até comovidas, que com isso ele mostra uma ‘confiança’ indizível! Sabe que ninguém o machucará! Na realidade, porém, nada mais é do que uma grave diminuição da capacidade de ‘vigilância’, um acentuado retrocesso da atividade anímica.”
Segundo a reflexão, estar alerta para defender-se não é uma crueldade, mas parte das capacitações desenvolvidas naturalmente por cada animal. A vigilância é, portanto, uma qualidade conquistada. Evitar a superproteção desnecessária, não exclui, contudo, que se construa uma relação de confiança e afeto, observando o que pode ser exigido de cada animal e que necessidades precisam ser supridas.
E onde nós, humanos, e a nossa paz desejada nos encaixamos nessa história? A paz para o ser humano, assim como para os animais, talvez não seja a ausência total de perigos e nem mesmo a ausência de atividade, como corremos o risco de pensar.
Buscando na minha memória fragmentos banhados da sensação de paz, vejo que eles podem acontecer nas férias, em meio a paisagens bucólicas ou em países mais seguros. Mas vivi alguns momentos de paz ainda com maior intensidade em períodos de trabalho, ao finalizar algo que me parecia importante. Talvez a paz esteja ligada ao equilíbrio entre atividade e descanso e, em parte, à ideia de missão cumprida. Ela não cai, então, como um banquete pronto na bandeja dos afortunados, mas é construída.
Muitos imaginam que a paz seria a ausência de qualquer tipo de pressão, e não é. A paz é justamente a condição de impedirmos qualquer forma de segregação ou de apequenamento da vida e também da nossa condição de felicidade”, avalia Mario Sergio Cortella. A opinião do educador também aponta para um tipo de paz ativa e construída.
“Não vou brigar para ficar em paz”, ouve-se por aí. Esse caminho pode ser válido em muitas situações, mas será que ele sempre dá certo? Quem evita todo conflito por medo de se posicionar, ignorando as suas crenças e ocultando sua maneira de pensar, fica em paz?
Buscando um entendimento sobre a paz possível e real e considerando que ela não acontece sozinha, talvez exista uma ação principal que, quando cuidada, consiga andar de mãos dadas com a paz. “Conservai puro o foco dos vossos pensamentos, com isso estabelecereis a paz e sereis felizes!”, escreve Abdruschin.
Cuidar dos pensamentos emitidos e cultivados pode ser o berço da paz. Não cultivar pensamentos-sementes que tenham o potencial para se transformarem em monstros é o primeiro passo.
Pode parecer algo pequeno, considerando a paz ser tão grandiosa. Mas as mais diversas ações nascem de pensamentos, o mundo que nos cerca está cheio de pensamentos prontos para se unirem a outros pensamentos-irmãos, que acabam fortalecendo-se mutuamente e podem influenciar outras mentes. Por meio dos pensamentos constroem-se pontes ou barreiras em direção às pessoas ao redor.
Para exemplificar, poderíamos imaginar um ambiente de trabalho hostil, em que pouco se trabalha e muita política se faz, em que alguns só pensam e planejam driblar os colegas e atropelá-los para chegar ao pódio o mais rápido possível. Pensam exaustivamente em meios de manipular informações a respeito de determinado colega, difamam outro e mentem sobre as conquistas realizadas, tentando sobressair a qualquer custo. Como trabalhar em paz num ambiente assim?
Os fantasmas que se cria ao pensar nas mais diversas formas de prejudicar o próximo para sair por cima de qualquer situação não são fantasmas inofensivos ou simples pensamentos que “não pagam taxas”, mas são pensamentos-monstros que ficam perambulando por ali e voltam para assombrar seus donos quando eles menos esperam.
O exemplo serve para ilustrar o tema, contudo, tantos são os pensamentos de inveja, ódio, vingança, que não podemos imaginar coisas boas frutificando por aí. Mas... e se imaginarmos outros tipos de pensamentos? Os pensamentos de amor e bem querer são igualmente ou ainda superiormente fortes e podem ganhar poder com maior afluxo de pensamentos similares, influenciando pessoas para as boas ações e gerando o bem.
A paz não é construída a partir de uma receita pronta. É preciso conquistá-la a cada passo, dentro das condições que a vida apresenta e dentro da maturidade e capacitações de cada um. Mas, se conseguirmos afastar de nossas mentes as sombras e fantasmas pensados, passando a nutrir apenas pensamentos edificantes e positivos, aos poucos o ambiente ao redor vai mudar e a paz pode até chegar mais perto.
Aí, quem sabe, continuaremos alertas como o pica-pau embaixo do abacateiro, mas teremos outras condições anímicas para saborear a vida, mais leveza e afago no lugar de tanto desassossego desnecessário.



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